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quarta-feira, 3 de junho de 2009

Rasante

Aparentemente não havia relação entre os fatos: um peixe pousou em sua varanda esta manhã, e lá de cima ele vê um novo mendigo dançando na esquina. Décimo-segundo andar. Catou o jornal na porta como sempre, do meio do sono desarrumado lembra de ter visto mulher e crianças saindo a caminho da rotina matinal, rumou para a varanda em busca de um pouco de sol. Como sempre. Foi quando o eletrizou um sobressalto de pisar escorregando em algo mole e molhado, gelado, brilhante justo no raio de sol quando desliza até bater no vidro fumê que demarca a varanda. Um peixe! Um peixe... Não, não tem asas, não é peixe voador. Mas se mexe, está vivo! Um pouco ferido mas... um peixe vivo na varanda do seu décimo-segundo andar! Como pode, um peixe vivo? O olho rútilo parece fixo nele, mas sem expressão. A vida vem das guelras que se abrem e fecham, das escamas ainda coloridas. E agora, o quê? O bicho é grande, mais de um palmo, não coube no pequeno balde a duras penas encontrado sob um armário da área de serviço. Malajambrou-se numa travessa de peixe, funda, suprema ironia, sob os retalhados raios de luz que subiam refletidos pela Baía da Guanabara. A Baía de Guanabara... Parece chamar seu filho de volta às águas. Olha o mar, o Pão de Açúcar, gaivotas em rasantes. Vem a fome, o peixe respira lentamente, o jornal sofreu alguns respingos mas dá para ler. O café foi deixado pronto na garrafa térmica, tem pão e manteiga, não custa servir-se. Depois... Depois levar o peixe de volta. É o que se esperaria dele, se houvesse voz superior a esperar alguma coisa. O peixe voador que aterrissou em sua varanda. Vindo de onde? Mal lê o que lê, seção de Política, sempre a mesma ladainha. Vindo de onde? Um peixe caído do céu, o jornal repousando à mesa, a Baía de Guanabara, o Pão de Açúcar e um canto estridente vindo de baixo. Na rua, o mendigo, ou doido, dança sozinho, faz poses de artes de marciais e avança — meio corajoso meio precavido — para dentro do asfalto, onde ônibus lhe passam rentes. Um mendigo desconhecido. Ou doido. Não o doido de todo dia, aquele bêbado que misteriosamente aparece volta e meia asseado, algum favor de vizinho, quem sabe um emprego. O novo homem não dura uma semana, já-já estará na sarjeta de novo. Não, é um doido novo, o das poses marciais. Quase não faz barulho, de vez em quanto o canto estridente, anúncio de golpe no ar. Não se vê o adversário, mas e daí? Ninguém o vê. Passantes o ignoram como a um outdoor mal feito. E eis que surge o outro mendigo, o bêbado, o conhecido da vizinhança. Está num dia razoável, anda com ajuda de bengala, mas não disfarça a surpresa de ver o outro tomar-lhe a cena no pedaço. Diminui o passo, depois olha para trás. Para, volta a andar. E daí?, terá pensado, ninguém o vê. A ele, o louco tradicional, todos veem. Não o explicam, mas o veem: o outdoor bem feito mas datado, puseram ali e esqueceram. A vista conhece, mas não se esforça mais para entender. Espirra água da travessa de peixe, um golpe certeiro vara o ar, um bater de asas sacode ali perto e faz vento em sua cara. A gaivota! Veio buscar o peixe que lhe escapara das garras. Em vão: este está salvo, por obra e graça do destino, ao menos desta vez. O homem agora pode dedicar-se a seu pão, embora com alguma pressa devido ao avançado da hora. O discurso do deputado volta a fazer sentido, se bem que um dia aquele jornal pode vir a embrulhar o mesmo peixe. E daí? Ao atravessar a rua, é só desviar da dança mendiga e procurar um cantinho mais fundo para depositar com sucesso o presente vivo de seu despertar. Depois correr à garagem e fazer o carro tirar o atraso. Qual é mesmo a pauta da reunião de hoje?

8 comentários:

Bila Amorim disse...

Iuuuuu!! aaaa! oooo!!
estava com saudade de ler péricles. Já lhe disse isso, repito agora. Gostei do desfecho. Mas estranhei algo: achei parecido comigo. E antes, sempre te achei bem mais... enfim, mais... nos aproximamos? Ou estou enganada? O que você acha, Zoon?

Péricles Peri disse...

Não acho. Na verdade fiquei incomodado justamente pelo fato de não conseguir me livrar do meu estilo de sempre.

Mas acho que tenho que me conformar com isso...

Cláudio disse...

Qual problema com seu estilo de sempre?

Péricles Peri disse...

Se você não percebe, não sou eu que vou dizer, hehe;

Mas mesmo que não houvesse problema nenhum: o problema do estilo, qualquer estilo, é ele próprio. É sermos reféns de um único jeito de escrever. Incapazes de fazer diferente.

É um dilema artístico. Mas pode ser uma motivação também.

Péricles Peri disse...

ps.: o conto é baseado em fatos reais.

ps2.: há uma incoerência na narrativa, só percebi depois. Claro que não vou dizer qual é.

Cláudio disse...

Peri,

Ninguém fica julgando o trabalho do outro com uma lupa, a não ser se for um crítico chato sem muito o que fazer.

A arte existe à semelhança da realidade (às vezes o contrário também vale), e interessa mais o conteúdo do que a forma (pelo menos para aqueles que querem um pouco mais do que o simples prazer sensorial).

Em resumo: relaxa e continua escrevendo.

Bila Amorim disse...

Bem, não achei que houve uma mudança de estilo, mas achei este texto mais leve que os anteriores. Isso foi o que eu quis dizer. Eu entendo o que você quer dizer sobre se sentir vítima de um estilo, mas acho que talvez seja inevitável quando o que se escreve é quase sempre autobiográfico. Além de inevitável, não necessariamente ruim.

Alexandre Beanes disse...

como pode um peixe vivo viver fora da lagoa? o peri está de volta, mesmo que reclame do estilo. o que, para mim, serve de base e caminho. estilo em escrita é algo, mais uma vez opinião minha, a ser buscado. e você, mesmo a contragosto, tem um que é coerente com os temas e as vivências que passa para o papel. seja bem vindo de volta, mais uma vez e sempre.