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quinta-feira, 25 de junho de 2009

Inspire fundo

A peste chegou. Tem escola fechando no bairro vizinho, criança de máscara, gestos arredios. Os que ainda nos arriscamos a ir trabalhar, cumprimentamo-nos à distância. Nada de aperto de mão, abraço, dois beijinhos. Alarme ao menor sinal de nariz entupido. Maldizer a fragilidade da condição humana e a superpopulação planetária é o que cabe aos pobres diabos trancados em casa, sob murmúrios aflitos - "Vírus espírito de porco". Só nos resta uma coisa a fazer: vamos à rua, tomar vento na cara, correr pelas calçadas e alamedas, andar de mãos dadas, beijar desconhecidos, varar a noite no derradeiro porre, antes do de amanhã. A morte é o verdadeiro vírus, e ela está em toda esquina, no segundo seguinte, no próximo passo. Vamos sair hoje à noite, como se não houvesse amanhã. Na verdade não há.

*

E aproveitando a deixa, a música que me inspirou, do grupo Squirrel Nut Zippers (baixem o disco, é muito bom, jazz rememorado).

La Grippe

There's a flu bug getting passed around
Spreading like fire through this town
There's a virus holing up inside us
Each one that I know is coming down
There's an Asian influenza
Infecting us all by the scores
And it's turning into pneumonia
We must go out once more
There's a fool moon howling at the night
And each bark is much worse than each bite
So we must go out and dance around
Yes we must go tonight
So the doctors came on the evening train
With their flasks and their caskets and vials
Mass psychosis was their diagnosis (yes)
So we all cashed our checks and went wild
There's a fool moon howling at the night
And each bark is much worse than each bite
So we must go out and dance around
Yes we must go tonight

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Rasante

Aparentemente não havia relação entre os fatos: um peixe pousou em sua varanda esta manhã, e lá de cima ele vê um novo mendigo dançando na esquina. Décimo-segundo andar. Catou o jornal na porta como sempre, do meio do sono desarrumado lembra de ter visto mulher e crianças saindo a caminho da rotina matinal, rumou para a varanda em busca de um pouco de sol. Como sempre. Foi quando o eletrizou um sobressalto de pisar escorregando em algo mole e molhado, gelado, brilhante justo no raio de sol quando desliza até bater no vidro fumê que demarca a varanda. Um peixe! Um peixe... Não, não tem asas, não é peixe voador. Mas se mexe, está vivo! Um pouco ferido mas... um peixe vivo na varanda do seu décimo-segundo andar! Como pode, um peixe vivo? O olho rútilo parece fixo nele, mas sem expressão. A vida vem das guelras que se abrem e fecham, das escamas ainda coloridas. E agora, o quê? O bicho é grande, mais de um palmo, não coube no pequeno balde a duras penas encontrado sob um armário da área de serviço. Malajambrou-se numa travessa de peixe, funda, suprema ironia, sob os retalhados raios de luz que subiam refletidos pela Baía da Guanabara. A Baía de Guanabara... Parece chamar seu filho de volta às águas. Olha o mar, o Pão de Açúcar, gaivotas em rasantes. Vem a fome, o peixe respira lentamente, o jornal sofreu alguns respingos mas dá para ler. O café foi deixado pronto na garrafa térmica, tem pão e manteiga, não custa servir-se. Depois... Depois levar o peixe de volta. É o que se esperaria dele, se houvesse voz superior a esperar alguma coisa. O peixe voador que aterrissou em sua varanda. Vindo de onde? Mal lê o que lê, seção de Política, sempre a mesma ladainha. Vindo de onde? Um peixe caído do céu, o jornal repousando à mesa, a Baía de Guanabara, o Pão de Açúcar e um canto estridente vindo de baixo. Na rua, o mendigo, ou doido, dança sozinho, faz poses de artes de marciais e avança — meio corajoso meio precavido — para dentro do asfalto, onde ônibus lhe passam rentes. Um mendigo desconhecido. Ou doido. Não o doido de todo dia, aquele bêbado que misteriosamente aparece volta e meia asseado, algum favor de vizinho, quem sabe um emprego. O novo homem não dura uma semana, já-já estará na sarjeta de novo. Não, é um doido novo, o das poses marciais. Quase não faz barulho, de vez em quanto o canto estridente, anúncio de golpe no ar. Não se vê o adversário, mas e daí? Ninguém o vê. Passantes o ignoram como a um outdoor mal feito. E eis que surge o outro mendigo, o bêbado, o conhecido da vizinhança. Está num dia razoável, anda com ajuda de bengala, mas não disfarça a surpresa de ver o outro tomar-lhe a cena no pedaço. Diminui o passo, depois olha para trás. Para, volta a andar. E daí?, terá pensado, ninguém o vê. A ele, o louco tradicional, todos veem. Não o explicam, mas o veem: o outdoor bem feito mas datado, puseram ali e esqueceram. A vista conhece, mas não se esforça mais para entender. Espirra água da travessa de peixe, um golpe certeiro vara o ar, um bater de asas sacode ali perto e faz vento em sua cara. A gaivota! Veio buscar o peixe que lhe escapara das garras. Em vão: este está salvo, por obra e graça do destino, ao menos desta vez. O homem agora pode dedicar-se a seu pão, embora com alguma pressa devido ao avançado da hora. O discurso do deputado volta a fazer sentido, se bem que um dia aquele jornal pode vir a embrulhar o mesmo peixe. E daí? Ao atravessar a rua, é só desviar da dança mendiga e procurar um cantinho mais fundo para depositar com sucesso o presente vivo de seu despertar. Depois correr à garagem e fazer o carro tirar o atraso. Qual é mesmo a pauta da reunião de hoje?