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segunda-feira, 6 de setembro de 2010

No rolo com João

Há alguns meses, me caiu nos ouvidos uma gravação que permaneceu inédita por décadas, em poucas cópias de rolo antigo rodando pelo mundo, até que a internet tratou de trazê-la ao conhecimento de todos: João Gilberto num encontro caseiro, antes de suas primeiras gravações em disco mas já em plena forma, mostrando seus arranjos e experimentos para músicas que se tornariam eternas (e outras que ele jamais gravaria) num sarau informal. O fotógrafo Chico Pinheiro tratou de gravar (e bem gravado) o momento, talvez sem saber que fazia história. São dezenas de canções, além de comentários, conversas, sons de fundo. Para os amantes de João, é uma experiência e tanto. Enquanto eu estava lá, em plena intimidade com o cara, um jovem talento 50 anos atrás, escrevi o comentário abaixo.

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Ouço João encabulado num canto daquela sala. Não repara o chiado interferindo nas cordas da gravação em rolo antigo, ele está compenetrado, bim-bom, o meu coração pediu assim, bim-bim. Tom parece que hoje não vai dar as caras, para decepção das moças, mas o whisky do Chico fotógrafo não deixa a dever. “Mexe com as cadeiras mulata”, aqui só moça comportada, não se ouve um sussurro por entre o vapor da nicotina, todas só com ouvidos para ele. Todos nós na mesma. Mas o que é isso? Cada verso ele inventa de cantar de um jeito, e como se não bastasse os dedos no violão têm vida própria e fazem outra música quase simultânea, quase a mesma, mas nada a ver. Só ouvindo. Tudo quase aquelas velhas conhecidas melodias, mas ele desfaz, e quando esbarro no cinzeiro cheio que quase espatifa a seus pés ele esboça um meio sorriso – “a culpa é sua o samba é meu” – desliza a perna pro lado e parece aproveitar a seu favor o incidente, em seu constante improvisar planejadamente, no desfiladeiro do desafino, sem cair nem pra cá nem pra lá. Vem o latido do cachorro, mal se faz ouvir e já se molda à melodia, magnética atração absoluta, captada em rolo magnético, noves fora nada. O homem novo não pára de cantar, antes mesmo de eu nascer (e a fama de carrancudo que ganharia). Entre ele e a música não cabem no momento os mais milimétricos intrusos. O homem canto. E eu num canto de sala empoeirada pelo tempo, imagine o quanto ele chiará no futuro desse pretérito, ao ouvir o tal chiado. Mas não então, tudo mais-que-perfeito: passa o chiado despercebido e some diante de nós, audiotransportados no rolo gravado por nossos antepassados. O chiado está ali só para lembrar deste milagre, servir como único refúgio a que se agarrar, no qual se encontra a única chave para nos lembrar de voltar. Ou desapareceríamos aqui absorvidos, para sempre nesta sala sob o som de João.

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Aqui, o caminho dessa viagem do tempo: http://sombarato.org/node/658.