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Ouço João encabulado num canto daquela sala. Não repara o chiado interferindo nas cordas da gravação em rolo antigo, ele está compenetrado, bim-bom, o meu coração pediu assim, bim-bim. Tom parece que hoje não vai dar as caras, para decepção das moças, mas o whisky do Chico fotógrafo não deixa a dever. “Mexe com as cadeiras mulata”, aqui só moça comportada, não se ouve um sussurro por entre o vapor da nicotina, todas só com ouvidos para ele. Todos nós na mesma. Mas o que é isso? Cada verso ele inventa de cantar de um jeito, e como se não bastasse os dedos no violão têm vida própria e fazem outra música quase simultânea, quase a mesma, mas nada a ver. Só ouvindo. Tudo quase aquelas velhas conhecidas melodias, mas ele desfaz, e quando esbarro no cinzeiro cheio que quase espatifa a seus pés ele esboça um meio sorriso – “a culpa é sua o samba é meu” – desliza a perna pro lado e parece aproveitar a seu favor o incidente, em seu constante improvisar planejadamente, no desfiladeiro do desafino, sem cair nem pra cá nem pra lá. Vem o latido do cachorro, mal se faz ouvir e já se molda à melodia, magnética atração absoluta, captada em rolo magnético, noves fora nada. O homem novo não pára de cantar, antes mesmo de eu nascer (e a fama de carrancudo que ganharia). Entre ele e a música não cabem no momento os mais milimétricos intrusos. O homem canto. E eu num canto de sala empoeirada pelo tempo, imagine o quanto ele chiará no futuro desse pretérito, ao ouvir o tal chiado. Mas não então, tudo mais-que-perfeito: passa o chiado despercebido e some diante de nós, audiotransportados no rolo gravado por nossos antepassados. O chiado está ali só para lembrar deste milagre, servir como único refúgio a que se agarrar, no qual se encontra a única chave para nos lembrar de voltar. Ou desapareceríamos aqui absorvidos, para sempre nesta sala sob o som de João.
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Aqui, o caminho dessa viagem do tempo: http://sombarato.org/node/658.