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sexta-feira, 20 de março de 2009

O amor: um tapete preto no meio da sala

Ela acordou e, como sempre, se voltou para o lado esquerdo para abraçar o corpo magricelo do marido. Ainda meio sonolenta, passou o braço em volta da cintura dele e sentiu pelos. Sim, pelos. Abriu os olhos com preguiça e certeza de que tinha uma explicação para ter tido esta sensação - o gato, talvez, tivesse aberto a porta e subido na cama. Com as palpebras no meio dos olhos visualizou o que mais tarde ela chamaria, contando para sua irmã, de "aquele tapete preto de chenile". Arregalou os olhos. O braço do marido estava coberto de pelos. Pelos que nao estavam ali antes. Mas muitos pelos, nao se via a pele.
Pensou por dois segundos onde estaria errando. Pois claro, não podia haver pelos ali, ainda mais naquela quantidade. Seu marido sempre fora imberbe. Nao conseguiu pensar em nada. Quis virar o corpo todo do marido para o seu lado para acorda-lo e perguntar o que era aquilo ou pior: para confirmar alguma surpresa maior ainda do que o novo braço peludo dele. Mas estava com um pouco de nojo e medo de tocar nele.
Curiosamente, neste instante, ele se virou pra ela, ainda dormindo. E este foi provavelmente o momento mais estranho que aconteceu na história da humanidade, mas que infelizmente ficou guardado entre ela e sua irmã. No máximo com uma amiga da irmã (que não resistiu e contou). O marido tinha pelos pelo corpo todo. Bem, esta explicação está ruim. Ele não tinha pelos apenas, ele tinha pelos longos, grossos, pretos pelo corpo todo. Mais pelos que um macaco. Aliás, ele se parecia muito com um macaco, um pouco mais feio porque lhe faltavam os olhos doces que todo símio tem.
Ela não se conteve. Soltou um grito silencioso. Aquele suspiro com a respiração presa depois, como um grito pra dentro. E ficou paralisada, olhando pra cara dele.
Ele, o Arnaldo, aquele homem por quem ela se apaixonou desde o primeiro encontro. Aquele homem barbeado, e bem barbeado. Rosto liso, lindo. Advogado, na verdade promotor público, tão promissor, o melhor genro dos seus pais (todos sabiam veladamente que o Arnaldo era o genro favorito). O homem pra quem ela se entregou completamente, se dedicou, fez striptease pra esse homem. Esse não, aquele.
O Arnaldo, que seria o futuro pai dos seus filhos, tinha virado uma espécie de bicho. De bicho não, uma espécie de monstro, um pequeno king kong, uma bizarrice como a mulher barbada do circo. Assim que pensou na mulher barbada do circo foi correndo para o espelho. Ufa! Estava normal. Que alívio. Seu único problema agora seria se livrar do Arnaldo Kong. Sim, e se livrar é uma palavra forte demais mas ela não tinha outra opção. Ela não ia viver com aquilo, mostrar pras amigas, sair com ele ou qualquer coisa do gênero. Na verdade, ela queria muito que ele desaparecesse. Ela preferia dizer que tinha sido abandonada a se mostrar ao lado dele.
Quem sabe o zoológico aceitasse o Arnaldo? Ela podia dizer que ele era um espécime único de chimpanze. Melhor! O Elo perdido! Um descendente do Elo perdido! Ou o elo perdido tinha sido o ultimo dele? Será que acreditariam? Mesmo assim ela teria que leva-lo de carro até o zoológico. Descer no elevador, encontrar vizinhos... e a câmera do elevador? Não, de jeito nenhum. Ir a um circo daria na mesma.
Ficou imaginando se ele ainda sabia falar. Ok, o Arnaldo nunca foi bom de comunicação, mas não saber a língua é diferente. Se ele ainda pudesse falar isso iria acabar com os planos dela de vender ele pro zoológico. Vender, claro, pois a essa altura ela já tinha se dado conta da raridade que tinha nas mãos. Se ele ainda soubesse falar ninguém acreditaria em homem-macaco, elo perdido, espécime raro ou nada disso. Fariam uma depilação a laser nele e pronto. Como se isso pudesse trazer seu Arnaldo de volta. Nunca mais teria seu Arnaldo de volta. Agora era dar a volta por cima e tirar proveito da situação, como sua avó lhe ensinou desde pequena.
E ele não acordava para resolver o mistério da fala. Continuou esperando. Não exatamente esperando, mais pensando do que esperando. Desejava intimamente que ele não acordasse mais. Daí, ela até poderia mesmo fazer um tapete preto pra sala. Um tapete pra sala... um tapete novo e preto pra sala. Nao seria de chenile, mas seria de Arnaldo. Até combinaria com seus móveis. Ela não precisaria tirar o corpo do apartamento. E ainda ficaria com uma parte do Arnaldo ou um pedaço dele pra si, pra sempre, ali. Os detalhes da transformação do Arnaldo em tapete são desnecessários. Podem parecer bizarros, mórbidos, apesar de tudo ter sido feito com muita delicadeza e amor. 5 dias ela ficou dentro do apartamento neste trabalho. Se dedicando ao Arnaldo. Fez o melhor que pode. E fez o melhor por ele. Ele ficaria feliz se visse o resultado. E até hoje, o Arnaldo está ali, enfeitando sua sala, combinando com seus móveis. De vez em quando, secretamente, quando as crianças estao dormindo e o marido vendo futebol, ela alisa o tapete preto.
E suspira.

2 comentários:

Péricles Peri disse...

Pobre Arnaldo.

Será esta a sina masculina sem exceção: pisar nos astros distraídos, sem perceber estamos nos transformando num tapete preto peludo?

Bila Amorim disse...

Não creio.
Acho que o Arnaldo deveria ter sido desde sempre um tapete preto peludo.
E quando se tem um destino tão forte assim, uma hora ele se revela.
:)